Caderno de Cidades – página 22
Por uma chance de melhorar de vida
Durante o carnaval, um homem de estatura mediana, negro e magro chamou a atenção em um bloquinho de rua. A fantasia era diferente, assim como a maquiagem. O azul da roupa realçava os traços. A alegria era contagiante. Ele dançava pela avenida. Apesar de a cena parecer natural, foi a primeira vez que Richeli Alves Oliveira, 22 anos, brincou o carnaval e chamou a atenção por um aspecto positivo. Até então, o mais chamativo nele sempre foi o fato de estar sujo, fragilizado, vivendo na rua. Mas, de um tempo para cá, essa realidade mudou. E a festa foi, de fato, no carnaval. Muitas pessoas participaram desse processo e o apoio do Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (Centro Pop) foi essencial. O único senão em tudo isso é saber que a maioria da população nessa condição não terá a mesma chance. Só existem duas unidades, uma na Asa Sul e outra em Taguatinga, para atender a um público estimado em 2,5 mil pessoas.
“Esse foi o meu primeiro carnaval. A única vez na vida em que pude brincar assim, no meio das pessoas, sem me sentir excluído”, declarou Richeli, ainda na avenida, na segunda-feira de carnaval, no Bloco do Amor. Essa experiência foi possível por conta somente de uma palavra e, claro, o significado dela: parceria. Richeli é atendido no Centro Pop, que é parceiro da Equinócios: Atividades em Comunidade, parceira do Bloco do Amor. Todos juntos em prol de um mesmo objetivo: fazer mais e melhor por todos. Cerca de um mês antes do carnaval, a Equinócios organizou, dentro do Centro Pop, oficinas de música, de confecção de fantasias e de produção de lambe-lambes — cartazes com conteúdo artístico e/ou crítico colado em espaços públicos. Os usuários da assistência social compuseram canções carnavalescas, elaboraram o estandarte usado no dia da folia e produziram as fantasias.
A oficina continuará após a folia. “É uma aproximação da cultura. Hoje, um dos problemas que temos é que o contato com as pessoas em situação de rua é sempre de forma violenta. E a cultura pode ser um dos caminhos para estabelecer um diálogo mais amoroso deles com a cidade e o restante da população”, explicou o gerente do Centro Pop, Luan Grisolia, 32 anos. Segundo ele, 150 pessoas em situação de rua, em média, visitam o centro diariamente. Lá, podem se alimentar — são 400 lanches distribuídos por dia —, tomar banho, lavar roupas, fazer acompanhamento com psicólogos, médicos e profissionais da área de assistência social. Além do grupo formado antes do carnaval, a Equinócios promove oficina de fotografia. Eles têm apoio do governo, com o Fundo de Apoio a Cultura (FAC).
Parceria
Com a ajuda, fizeram duas exposições, no Museu da República e na Confederação Nacional de Saúde (CNS); e preparam mais uma, prevista para 10 de abril. “Eu era vizinha do Centro Pop. Enquanto uns fugiam de perto, pois achavam que ter o centro aqui aumentava o número de pessoas em situação de rua; eu quis conhecer. Criamos um vínculo, fui vendo várias necessidades, entre elas, a da sociedade se integrar mais”, defendeu Juliana Sangoi, idealizadora da Equinócios. Outra parceria também está rendendo muitos frutos para o Centro Pop, com a revista Traços, um projeto social já implantado em 120 cidades do mundo e iniciado em Brasília em novembro do ano passado.
A revista foi importante para o Centro Pop e o centro foi importante para a revista. A publicação tinha uma missão e foi por meio do projeto que acharam os protagonistas dessa história, que está só começando. Os usuários da assistência são selecionados, há um processo preparatório e o negócio começa a funcionar. Em três meses, 92 pessoas passaram por esse rito e, hoje, 42 estão consolidadas. A ideia é que elas possam ter na revista uma fonte de renda e de motivação para se reerguer, capacitar-se cada vez mais e buscar espaço no mercado de trabalho. Cada exemplar da revista custa R$ 5. Desse total, o educando, chamado de “porta-voz da cultura”, ficará com R$ 4 e utilizará R$ 1 para comprar uma nova revista.
E de revista em revista, ele aluga uma casa. Sai da rua. Paga as contas de água e luz e faz compras no mercado. “Temos que aprender novamente a ter responsabilidade. Família, trabalho e prestar conta para nós mesmos. A rua é difícil e rotativa. Hoje sai um, amanhã vêm 10”, afirmou Adelcio Silva Santos, 39 anos. O ex-morador de rua é um exemplo da eficiência do centro e de todas as parcerias feitas. De viciado, virou disseminador da cultura e com um futuro promissor. “Aqui percebi que sou capaz. Minha autoestima mudou. Antes, eu incomodava para pedir. Hoje, é para falar de cultura. E as pessoas param de fazer o que estão fazendo para me ouvir falar”, relatou. Segundo o coordenador social da revista, Alexandre Rangel, a principal atuação deles é na venda da revista. Mas a maior finalidade não é comercial. “É um processo de apropriação. Nosso foco é em um empreendimento deles, no mercado de trabalho, nessa construção de um diálogo com a população”, declarou.
Para saber mais
Projeto integra DF Sem Miséria
O Centro Pop da Asa Sul foi inaugurado em julho de 2012, pelo então governador Agnelo Queiroz. Começou com a proposta de funcionar das 8h às 18h em dias úteis, mas, hoje em dia, abre às 9h e fecha às 17h. O projeto faz parte do Plano DF Sem Miséria e da Política do Governo do DF para população em situação de rua e integra o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Além das oficinas feitas com a ajuda dos parceiros, há uma horta social, com alface, couve, milho, tudo plantado e cuidado pelos usuários do sistema. A equipe do Centro Pop também faz abordagens nas ruas do DF e visitas a usuários da assistência, como forma de acompanhar o andamento da pessoa em situação de rua. Dos acolhimentos feitos no centro, as pessoas que mais precisam de atendimento poderão ser encaminhadas para outras unidades de assistência — saúde ou social — do governo.